23.9.05
Prisões preventivas e ficção nacional
Segundo o acordão da juíza a que o Diário de Notícias desta sexta-feira teve acesso e que veio anular o mandado de prisão preventiva emitido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, Fátima Felgueiras esteve «ausente, alegadamente, para o Brasil», colocando-se numa situação de «aparente fuga à Justiça».
(Via Diário Digital.)
Lemos e temos dificuldade em acreditar. Quando uma juíza de direito chega ao ponto de questionar a existência da fuga de Fátima Felgueiras, explorada em horário nobre pelos vários canais televisivos nacionais, com a transmissão em directo de conferências de emprensa e de entrevistas feitas a partir da cidade maravilhosa, e capa de jornais e assunto de discussão nacional por largos períodos, perguntamos onde é que esta senhora deve viver, e o que é que podemos tomar como garantido numa audiência de tribunal. Perguntamos se será o autismo de quem não vê pela força das suas limitações, ou uma atitude dolosa de quem não vê porque não quer ver. Perguntamos se seria assim tão difício ao Ministério Público fazer essa prova. E perguntamos também se a srª. juíza terá tido o mesmo rigor na avaliação do voluntarismo e da disponibilidade de Fátima Felgueiras perante a Justiça que enaltece logo em seguida.
Por esta blogosfera fora, vêm muitas vozes alegadamente insuspeitas (adaptando desde já a nova perspectiva que a Justiça tem dos factos) tecer loas ao rigor da revogação da medida de coação de prisão preventiva aplicada a Fátima Felgueiras, porque aparentemente tal era justificada somente pela sua condição de autarca, e da possível interferência que tal facto poderia ter no processo, nomeadamente pela prossecução do eventual delito e por poder interferir com a aquisição de prova pela Justiça.
Se a justificação formal poderá estar eventualmente correcta, uma vez que não conheço o despacho original e não sou jurista, permitam-me constatar que, mesmo estando correcta, revela pelo menos que houve um erro de avaliação da situação protagonizado quer pelo Ministério Público, quer pelo próprio juíz que emitiu o despacho, já que se veio a confirmar pelos factos que o risco de fuga, também possível motivo para a aplicação da medida, não era de excluir. De qualquer modo dir-me-ão, e não posso deixar de concordar, que formalmente a revogação à luz do despacho original que não referia o risco de fuga e sustentava a medida na condição de autarca de Fátima Felgueiras está correcta. O que não inviabiliza que se tenha que constatar também que os pressupostos deste estavam errados.
Além disso, levanta-me algumas questões na aplicação da nova medida de coação, o termo de identidade e residência:
- Se Fátima Felgueiras ganhar as eleições para que se candidata, será de presumir que se voltam a verificar os motivos de sustentação do despacho original, nomeadamente o retorno à condição de autarca, sendo que a medida de coação será imediatamente substituída pela prisão preventiva original?
- Logo que começe o julgamento, a presunção de inocência que assiste Fátima Felgueiras não deixa também de aceitar como eventual a perspectiva que este não corra a sua feição e que se veja no risco de ser condenada. Sendo alguém que no passado não hesitou em fugir à Justiça, não demonstra arrependimento e mantém a mesma situação de dupla nacionalidade que mantinha anteriormente, não será por demais óbvio constatar que passa a haver todo o interesse da ré em partir em fuga caso "as coisas dêm para o torto", e como tal colocá-la preventivamente na prisão quando começar o julgamento?
Acima de tudo, mais uma vez é todo um Estado de Direito que perde mais força e credibilidade. É todo a nossa Assembleia da República pejada de sumidades jurídicas que mais uma vez sai humilhada, ao se ver como foi incapaz de legislar numa situação tão simples e tão óbvia como a fuga à prisão preventiva. São o nosso poder judicial e os nossos juízes, presentemente mais perdidos em reivindicações sindicais e em guerras de caserna, quais operários têxteis, que saem descredibilizados e também remetidos para um papel de idiotas úteis do sistema, perdidos numa pompa e circunstância que cada vez se torna mais caricatural e imposta pela força da ameaça a quem não é político ou não mexe com influências, e menos fruto do reconhecimento e respeito.
Resumidamente, mais uma mostra pública do progressivo apodrecimento do Estado como um todo. Aguardam-se as cenas do próximo capítulo e o novo cravo a ser colocado no caixão.
colocado por JLP, 20:33