Crítica Portuguesa

3.12.05

Cruzes II

Regressou recentemente à ribalta a problemática dos crucifixos nos estabelecimentos de ensino, e em geral da separação entre o estado e as igrejas e comunidades religiosas.

Vêm os devotos do costume clamar com imemoriais tradições e que a laicidade que a nossa constituição impõe ao estado não deve ser veículo de perseguição religiosa ou para o estabelecimento de um estado areligioso, e que o peso da lei se deve vergar aos números da maioria católica da população Portuguesa. Abanam-se os fantasmas de Afonso Costa e do Marquês de Pombal.

Se é aceite, julgo que por todos, a liberdade de religião e associação estabelecidas pela nossa constituição, e que a laicidade do estado não deve ser argumento para cruzadas cegas contra a religião, não deveria ser também difícil de compreender pela leitura da nossa lei fundamental que o estado, na sua propriedade e na sua acção, não deve ser suporte publicitário ou montra de nenhuma destas. Não está em causa (como em França, para mim numa interpretação abusiva do conceito de laicidade) a liberdade de qualquer um frequentar edifícios públicos ostentando os símbolos religiosos que bem entender, e de as criancinhas irem para a escola com crucifixos ao pescoço, lenços islâmicos ou turbantes. Está sim em causa utilizar propriedade pública como showcase religiosa.

Se, na nossa constituição, a defesa do direito à liberdade de consciência e de religião é feita em termos não muito distintos da liberdade de associação, pensamento e participação em partidos políticos, ninguém compreenderia que as nossas escolas, por esse motivo, ostentassem bandeiras do partido político que a construiu ou, no caso presente, do Partido Socialista só porque este conseguiu garantir nas urnas o voto da maioria absoluta dos eleitores portugueses. Também ninguém concerteza gostaria de lá ver bandeiras da União Nacional só porque "lá estavam".

Mesmo o próprio argumento da tradição é relativo, como bem desmonta o Diário Ateísta em artigo recente, relembrando que a corrente existência de muito desses crucifixos foi estabelecida por decreto no tempo da velha senhora:
"A lei intitula-se «Remodelação do Ministério da Instrução Pública» (que doravante passou a chamar-se Ministério da Educação Nacional) e reza assim, na sua Base XIII:

«Em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição.
O crucifixo será adquirido e colocado pela forma que o Governo, pelo Ministério da Educação Nacional, determinar.»"
Urge portanto ter coragem e clarificar as coisas. Nem a vontade do estado e de grupos de cidadãos em que se cumpra (e bem) a lei deverá ser interpretada como perseguição religiosa ou tentativa de criar guerras religiosas onde não existem, lei essa que existe e foi democraticamente aprovada por um país que era na altura ainda mais maioritariamente católico que no tempo presente, nem se deve aproveitar o ensejo para abraçar cruzadas mais ou menos pessoais de tentar banir por todo a religião do espaço público.
colocado por JLP, 20:05

0 Comentários:

Adicionar um comentário