Crítica Portuguesa

6.2.06

Re: laicização e liberdade

Escreve com o habitual interesse Rui de Albuquerque no Portugal Contemporâneo uma saborosa provocação que não resisto a "morder":
"Não deixa de ser curioso constatar que o Ocidente que repudia os actos de barbárie recentemente ocorridos nalguns países islâmicos contra representações diplomáticas europeias, seja o mesmo Ocidente que enaltece a Palestina contra Israel, que condena as intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, que clama pela defesa da soberania do Irão na questão nuclear, ou que displicentemente costuma desculpar atitudes igualmente agressivas em relação aos norte-americanos."
Acho que se está a tentar catalogar como muito diferentes coisas que afinal, em grande parte, não são assim tão distintas, pelo menos no que legitima muito do repudiar.

Na situação presente em torno dos cartoons, a discussão gira em grande parte em torno de se o exercício das liberdades defendidas num determinado país poderá ter que ser avaliada, num mundo globalizado, no que toca aos seus possíveis efeitos em terceiros, principalmente quando o que está em causa é um fenómeno trans-nacional como a religião, distribuído por vários povos. Questiona-se também se é legitimo à comunidade internacional avaliar e tomar iniciativas contra o que são acções próximas de delitos de opinião, num quadro das relações entre estados soberanos e repudia-se o facto de na resposta muçulmana haver o claro violar de disposição internacionais no sentido da protecção das embaixadas pelos países onde estão sediadas, o que não pode deixar de constituir uma motivação mais do que legítima de crítica.

Na minha opinião, é um movimento de ingerência de estados na vida e nas decisões de outros estado que não estou disposto a tolerar.

No final, são acima de tudo pontos de vista relativos à relação entre estados soberanos, sendo que o que se tem criticado são as intromissões e as tentativas de forçar a actuação de estados ao nível interno, bem como as violações de preceitos internacionais que regem relações entre estados.

No caso que refere da invasão Americana no Afeganistão e no Iraque, o que houve foi um claro abuso de um suposto "direito" de ingerência, e a violação da soberania desses estados ao arrepio de todas as disposições internacionais nesse sentido. Será que o repúdio deve ser diferente?

Quando se critica e pretende violar a soberania do Irão na sua opção de (e clarificando as coisas) ter armas nucleares, invocando "desígnios internacionais" dos "bons" de "construir um Médio-Oriente livre de armas nucleares", e se permite a um vizinho praticamente estacionado no seu quintal que tenha essas mesmas armas, não sujeitas a qualquer tipo de inventário ou inspecção, não será de criticar a superioridade moral do double standard e a arrogância de definir onde estão os bons e os maus?

Não será, do ponto de vista liberal, a defesa da soberania um corolário da defesa da propriedade, e será que, como tal, nos podemos arrogar a defender soberanias de 1ª e de 2ª?
"O Islão e o mundo muçulmano não distinguem a sociedade da religião, o Estado da Igreja, a Cidade de Deus da Cidade dos Homens, em suma, o Céu e a Terra. Convém não esquecer que o fundador do islamismo, Maomé, foi simultaneamente um líder religioso e político. Foi o profeta a quem Alá ditou, ao longo de vinte e dois extensos anos, o Alcorão, mas foi também o conquistador de Medina, de Meca e o unificador da Arábia."
E será que a coisa é e foi assim tão diferente nas outras "religiões do livro" e de outras?

Será que é muito diferente ter um Reino Unido em que a Rainha é simultaneamente a líder religiosa da religião oficial, e em que o clero tem inerência na Câmara dos Lordes?

Será muito diferente de quando tivemos aqui na nossa vizinha Espanha os Reis católicos?

Será muito diferente do Deus, Pátria e Família?

Será que é muito diferente de um Moisés que quis criar a sua pátria, e do estado actual de um Israel que confunde "israelita" com "judeu", e que vai reclamando território de escritura divina passada?

Será que é muito diferente de um Dalai Lama preocupado simultaneamente com o divino e com o estatuto terreno do Tibete e com as questões "terrenas" da soberania?

Será que foi muito diferente de todos os monarcas europeus feudais de bula papal passada, dos Reis Salomões, Herodes, e outros do rol?
"O Alcorão é, de resto, não só um livro de preceitos religiosos, mas também de normas sociais, políticas e jurídicas."
Como assim o é também a bíblia, se for lida com o mesmo fervor fundamentalista do Corão. Não é passado grande parte do antigo testamento a enaltecer as virtudes e a fustigar as imoralidades sociais? Não estão lá as fontes da lei de talião?
"Os fundamentos do islamismo são, por conseguinte, totalitários."
E não serão totalitários, por definição, os fundamentos de todas as religiões?

O anunciar de se ser o porta voz de uma Verdade metafísica, património exclusivo de cada religião, sua origem e estandarte, do estar certo, absolutamente e por revelação, o anunciar ser o "caminho a verdade e a vida", não são porventura a expressão do maior dos totalitarismos?
"Não estabelecem, ao contrário do cristianismo, a distinção entre o temporal e o espiritual, o mundo terreno e o mundo divino. A dimensão humana é inseparável desses dois planos. A separação do «reino de Deus» e do «reino de César» não existem e, por isso, a esfera do divino invade a totalidade da existência humana. Tal como a sociedade e a sua forma de organização política, que não distingue o Estado laico do Estado religioso ou mesmo clerical, como sucede no Irão e sucedeu no Afeganistão dos talibans."
Relativamente a que esse comportamento que procura no Islão, também não o encontra nas outras grandes religiões monoteístas. Não foi durante séculos a igreja católica a principal fonte de poder e de legitimidade política da Europa? Não foi a expansão da fé o motor de muitas terrenas aventuras pelo mundo fora dos povos Europeus? Não foi até há bem pouco tempo a tiara papal um símbolo e um baluarte do poder temporal da igreja católica?

Com tudo isto, naturalmente não estou a excluir a crítica ao Islão, e acima de tudo aos muçulmanos. Mas, em grande parte, a questão é que se vai passando no Islão, na presente visão e cultura dos seus discípulosn aquilo que já se foi passando com outras religiões em outros instantes no tempo. Se ele demonstra uma maior ou menor possibilidade de se adaptar e evoluir, acho que ainda demorará mais tempo a vislumbrar, bem como as dores de crescimento por onde ainda terá que passar.

Mas acima de tudo lamento que uma religião que foi, pelo sua cultura, durante tanto tempo motor da evolução científica e das mentalidades, não tenha sabido aperceber-se do momento em que devia deixar a política levar o seu curso fora dela. Sem dúvida, ao mundo islâmico falta um Renascimento que o liberte das grilhetas que também já nos foram impostas.
colocado por JLP, 12:57

2 Comentários:

Caro JLP,

Agradeço a referência, mas não posso concordar consigo na maior parte do que afirma.
Em primeiro lugar, porque a soberania dos Estados não me agrada, sobretudo se e quando eles constituem um perigo evidente. à custa do princípio da não ingerência, Chamberlain deixou Hitler invadir a Polónia e dar início à 2ª Guerra Mundial. Se Churchill, menos dado a essas coisas da igualdade dos Estados na comunidade internacional, tivesse sido ouvide e agido mais cedo, provavelmente não teria havido guerra e ter-se-iam evitado milhões de mortos.
Em segundo lugar, porque, quando digo que o Alcorão é composto, em parte, por normas jurídicas, é porque ele se aplica, de facto, nos tribunais islâmicos como lei viva. O que, mutatis mutandis, corresponderia sensivelmente à aplicação da Bíblia nos nossos tribunais.

Um abraço,


RA
comentado por Anonymous Anónimo, 12:10 da manhã  
Caro RA,

"Em primeiro lugar, porque a soberania dos Estados não me agrada, sobretudo se e quando eles constituem um perigo evidente. à custa do princípio da não ingerência, Chamberlain deixou Hitler invadir a Polónia e dar início à 2ª Guerra Mundial."

Atenção que eu não defendo uma política de soberania absoluta dos estado. Obviamente que se um determinado estado, como a Alemanha no exemplo que refere, atentar contra a soberania de um estado terceiro, no caso da Polónia, há quanto a mim toda a legitimidade e justificação para o resto dos estados intervirem. Concordo portanto consigo que Churchill tivesse entrado em campo em força, teria toda a legitimidade de o fazer. Depois da ofensa estar feita. Nãoo tenho também nenhum problema em aceitar que fossem colocadas as forças que se entendessem nos territórios vistos como em risco de ofensiva.

Agora o que não concordo é com políticas de "ingerência preventiva" em assuntos que, até prova em contrario, dizem somente respeito à ordem interna dos países. Nem legitimo processos de intenção internacionais de dividir o mundo em "bons" e "maus", ao sabor das conveniências dos dominantes.

"Em segundo lugar, porque, quando digo que o Alcorão é composto, em parte, por normas jurídicas, é porque ele se aplica, de facto, nos tribunais islâmicos como lei viva."

De facto tem razão no facto de a sua aplicação ser literal. O que não é foi na história facto isolado do Islão. Se mesmo no que toca à aplicação literal de textos "sagrados" como fonte de lei o Islão não está sozinho, veja-se o exemplo da lei hindu, não será concerteza de negar a influência dos textos cristãos de forma mais ou menos explícita e clara (e também às vezes literal) no ordenamento jurídico no passado. Veja-se a Inquisição, por exemplo, e o Processo de Galileu.

Vejo que entretanto dissertou adicionalmente sobre o assunto, sendo que vou tecer os meus comentários adicionais por lá...

Abraço,

JLP
comentado por Blogger JLP, 2:07 da tarde  

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