12.7.05
Os autocratas
Escreve Vital Moreira na Causa Nossa, no seguimento das recentes absolvições de mulheres acusadas da prática de crime de aborto (negritos meus):
Só nos faltava agora que absolvição e condenação ficasse sujeita a critérios de boa vontade de juízes e Ministério Público! No nosso, soponho que por enquanto, Estado de Direito, está claramente definido o papel dos tribunais, num Estado que preconiza a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judicial. Não cabe ao poder judicial aplicar a Lei como se de um chefe tribal se tratasse, em que a Lei é formulada na sua cabeça quando se torna necessário sentenciar. Não lhe cabe exercer supostos mecanismos de avaliação contínua da Lei, e agir descricionariamente qualificando-a de obsoleta ou imprópria. A Lei não é feita nas salas de tribunal, nem estas são locais para se fazer política. Se ela é obsoleta ou imprópria, cabe ao orgão legítimo do poder legislativo revogá-la ou alterá-la, e aos tribunais aplicá-la avaliada que seja esta pelos critérios de validação vigentes.
Se a nossa Constituição estabelece que os tribunais são independentes e só se sujeitam à lei, depreender-se-à que essa sujeição não é somente o garante a sua independência mas o próprio estatuto que a eles obrigam. Não é de todo tolerável que um orgão de soberania que, para o bem ou para o mal, não funciona com mecanismos de legitimidade democrática, não está sujeito a nenhum processo de checks and balances e se arroga ao direito de se auto-regular, possa ter liberdades de interpretação e boas vontades.
Estaria VM tão agradado com o comportamento dos juízes se a sua atitude de boas vontades fosse expressa em decisões menos próximas da sua simpatia pessoal?
Quanto às considerações de "humilhação" das vítimas, advinda da investigação e do julgamento do caso, e sem fazer juízos em relação ao processo que aparentemente as transforma em "vítimas", cumpre apenas constatar que tal é um efeito lateral de todo o processo penal vigente. Estará VM também tão indignado com a exposição e "humilhação" de todos os outros casos em investigação e em julgamento? Estará VM tão indignado, por exemplo, com a "humilhação" dos arguidos do processo da Casa Pia, tão presumíveis inocentes como as acusadas de prática de aborto até prova em contrário? Propõe VM que se deixem de julgar acusados, por exemplo de crimes sexuais, somente porque se vão sujeitar à "humilhação" de ver a sua vida sexual discutida em audiência? Ou há, em última instância, inocentes de primeira e inocentes de segunda?
A culpa ou o comportamento reprovável neste, como em outros casos, estará mais na Sociedade que não deixa de querer pôr rótulos nos seus do que na própria investigação e julgamento propriamente ditos.
Finalmente, no que toca ao desejo de VM que não devam figurar no Código Penal artigos que não cumpram "os requisitos mínimos da punição penal, que é a conciência social da punibilidade dessa conduta", poder-se-à depreender que VM quer ver removida do Código Penal a penalização dos crimes fiscais ou os de ofensa dos símbolos e instituições do Estado? Ou a poligamia?
Em jeito de desfecho, e em relação ao caso concreto, só uma constatação: a de que mais uma vez o nosso Ministério Público foi humilhado, ao ter decidido avançar para o julgamento, e depois neste nem sequer ter conseguido fazer a prova da gravidez das arguidas, sendo forçado no final a afinar pela defesa e pedir a absolvição por falta de provas. Ridículo!
[...]
(i) nem sempre será possível a absolvição por falta de provas, por maior que seja a boa vontade de juízes e do Ministério Público; (ii) tanto ou mais penalizador do que a condenação é a humilhação pública da investigação penal e do julgamento a que são submetidas as vítimas; (iii) uma norma penal cuja não aplicação ninguém lamenta, pelo contrário, não merece continuar a figurar no Código Penal, por não cumprir os requisitos mínimos da punição penal, que é a conciência social da punibilidade dessa conduta.
Só nos faltava agora que absolvição e condenação ficasse sujeita a critérios de boa vontade de juízes e Ministério Público! No nosso, soponho que por enquanto, Estado de Direito, está claramente definido o papel dos tribunais, num Estado que preconiza a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judicial. Não cabe ao poder judicial aplicar a Lei como se de um chefe tribal se tratasse, em que a Lei é formulada na sua cabeça quando se torna necessário sentenciar. Não lhe cabe exercer supostos mecanismos de avaliação contínua da Lei, e agir descricionariamente qualificando-a de obsoleta ou imprópria. A Lei não é feita nas salas de tribunal, nem estas são locais para se fazer política. Se ela é obsoleta ou imprópria, cabe ao orgão legítimo do poder legislativo revogá-la ou alterá-la, e aos tribunais aplicá-la avaliada que seja esta pelos critérios de validação vigentes.
Se a nossa Constituição estabelece que os tribunais são independentes e só se sujeitam à lei, depreender-se-à que essa sujeição não é somente o garante a sua independência mas o próprio estatuto que a eles obrigam. Não é de todo tolerável que um orgão de soberania que, para o bem ou para o mal, não funciona com mecanismos de legitimidade democrática, não está sujeito a nenhum processo de checks and balances e se arroga ao direito de se auto-regular, possa ter liberdades de interpretação e boas vontades.
Estaria VM tão agradado com o comportamento dos juízes se a sua atitude de boas vontades fosse expressa em decisões menos próximas da sua simpatia pessoal?
Quanto às considerações de "humilhação" das vítimas, advinda da investigação e do julgamento do caso, e sem fazer juízos em relação ao processo que aparentemente as transforma em "vítimas", cumpre apenas constatar que tal é um efeito lateral de todo o processo penal vigente. Estará VM também tão indignado com a exposição e "humilhação" de todos os outros casos em investigação e em julgamento? Estará VM tão indignado, por exemplo, com a "humilhação" dos arguidos do processo da Casa Pia, tão presumíveis inocentes como as acusadas de prática de aborto até prova em contrário? Propõe VM que se deixem de julgar acusados, por exemplo de crimes sexuais, somente porque se vão sujeitar à "humilhação" de ver a sua vida sexual discutida em audiência? Ou há, em última instância, inocentes de primeira e inocentes de segunda?
A culpa ou o comportamento reprovável neste, como em outros casos, estará mais na Sociedade que não deixa de querer pôr rótulos nos seus do que na própria investigação e julgamento propriamente ditos.
Finalmente, no que toca ao desejo de VM que não devam figurar no Código Penal artigos que não cumpram "os requisitos mínimos da punição penal, que é a conciência social da punibilidade dessa conduta", poder-se-à depreender que VM quer ver removida do Código Penal a penalização dos crimes fiscais ou os de ofensa dos símbolos e instituições do Estado? Ou a poligamia?
Em jeito de desfecho, e em relação ao caso concreto, só uma constatação: a de que mais uma vez o nosso Ministério Público foi humilhado, ao ter decidido avançar para o julgamento, e depois neste nem sequer ter conseguido fazer a prova da gravidez das arguidas, sendo forçado no final a afinar pela defesa e pedir a absolvição por falta de provas. Ridículo!
colocado por JLP, 12:16
2 Comentários:
comentado por Unknown, 1:55 da manhã
Não acho que os juízes Portugueses tenham particulares preocupações com a lotação das nossas cadeias. São até particularmente ligeiros na aplicação da medida de prisão preventiva, um dos principais flagelos da nossa realidade prisional, em que é comum a coabitação de presos preventivos com condenados, até por crimes graves.
Além disso, grande parte da praxis dos nossos juízes, jurístas e dos cursos de Direito assenta em conceitos, muitas vezes dúbios e questionáveis, de supostos valores e de princípios de jurisnaturalismo que culminam numa perspectiva de aplicação subjectiva da lei que confere na prática um poder interpretativo quanto a mim desmesurado aos seus agentes.
Se as prisões estão sobrelotadas, não pode competir aos juízes serem válvulas de regulação. Compete sim, no seguimento da separação de poderes, ao poder legislativo avaliar e re-enquadrar a situação e promover possíveis alterações à prisão preventiva e à aplicação de penas alternativas à de prisão.
O que não inviabiliza que se possam estabelecer, quanto a mim, mecanismos de sugestão e de feedback, sempre numa perspectiva consultiva e informativa, do poder judicial ao poder executivo no que toca à qualidade das leis e a possíveis dificuldades que emanem da sua aplicação.
Além disso, grande parte da praxis dos nossos juízes, jurístas e dos cursos de Direito assenta em conceitos, muitas vezes dúbios e questionáveis, de supostos valores e de princípios de jurisnaturalismo que culminam numa perspectiva de aplicação subjectiva da lei que confere na prática um poder interpretativo quanto a mim desmesurado aos seus agentes.
Se as prisões estão sobrelotadas, não pode competir aos juízes serem válvulas de regulação. Compete sim, no seguimento da separação de poderes, ao poder legislativo avaliar e re-enquadrar a situação e promover possíveis alterações à prisão preventiva e à aplicação de penas alternativas à de prisão.
O que não inviabiliza que se possam estabelecer, quanto a mim, mecanismos de sugestão e de feedback, sempre numa perspectiva consultiva e informativa, do poder judicial ao poder executivo no que toca à qualidade das leis e a possíveis dificuldades que emanem da sua aplicação.
Não fosse assim e Portugal teria um problema ainda maior de excesso de população prisional ...
Assim sendo, os juízes optam por resolver 2 questões, 1 a da sua consciência face às leis, e outra o evitar do agravar do problema de sobrelotação das cadeias ...
Mas esse é o Estado de Direito (bem torto) que temos e merecemos, porque os juízes são em Portugal uma casta à parte acima de tudo e de todos, pois a aplicação das leis depende única e exclusivamente deles e eles só prestam contas a si próprios ...